Eugène Delacroix - A liberdade guiando o povo

INTRODUÇÃO
Delacroix é considerado o mais importante representante do romantismo francês. Na sua obra convergem a voluptuosidade de Rubens, o refinamento de Veronese, a expressividade cromática de Turner e o sentimento patético de seu grande amigo Théodore Géricault. O pintor, que como poucos soube sublimar os sentimentos por meio da cor, escreveu: "...nem sempre a pintura precisa de um tema". E isso seria de vital importância para a pintura das primeiras vanguardas.
Mas, pensasse o que pensasse, Delacroix não chegou a ser um pintor romântico no pleno sentido da palavra. Apesar de seu amor pela aventura, seu fascínio pelo Oriente fantástico, seu interesse desmedido por tudo o que fosse exótico, não voltou as costas aos antigos mestres. Como qualquer artista acadêmico, frequentou os museus para copiar os grandes do passado. Nem se furtou em suas obras às sugestões mitológicas da Antiguidade. Ficou a meio caminho entre a lealdade cultural ao mundo clássico e a necessidade de exprimir o mundo interior, rico de sensibilidade e imaginação. Quando a subjetividade prevalecia, conseguia desprezar as regras ortodoxas. E o resultado era uma pintura original e profundamente renovadora.
Foi assim com sua obra A Liberdade guiando o povo, inspirada na volta francesa de 1830, uma das últimas pinturas de Delacroix a qual imbuiu verdadeiramente o ideal romântico.

1. EUGÈNE DELACROIX
1.1. BIOGRAFIA DO ARTISTA
Renovação era a palavra que corria de boca em boca na França dos últimos anos do século XVIII, tirando seu alento dos feitos do novo comandante do exército, o pequeno general corso que se chamava Napoleão. Em 1798, um ano antes do golpe de Estado que o levaria ao poder, Napoleão chefiava as tropas da República na campanha do Egito; naquele ano, a 26 de abril, na localidade de Charenton-Saint-Maurice, perto de Paris, nascia Delacroix.
O menino foi registrado com o nome de Ferdinand Victor Eugène, filho de Charles Delacroix e Victoire Delacroix. Ele, importante figura política, ex-deputado, ex-ministro das Relações Exteriores, então embaixador da França junto ao Governo holandês. Ela, jovem e bonita dama da alta sociedade, filha do decorador alemão Oeben, desenhista de móveis na corte de Luís XV e Luís XVI.
Entretanto, os historiadores menos discretos têm outra versão quanto à paternidade de Eugène. O futuro pintor, afirmam, era filho ilegítimo de Talleyrand, que se tomaria célebre como chanceler de Napoleão e que, graças à sua extraordinária habilidade política, manteria o lugar mesmo depois da queda do imperador e passaria à história com o apelido de "Diabo Coxo".
Charles Delacroix era um homem doente e viria a falecer em 1805. No ano seguinte, a viúva mudou-se para Paris e matriculou o filho no Liceu Imperial, como fora rebatizado o velho e aristocrático Liceu Louis le Grand, do Quartier Latin. Personalidades de destaque na política, nas finanças e na arte haviam passado por esse colégio. Poucos anos antes de Delacroix, ali estudara Géricault, cujas futuras obras apressariam a transformação da pintura francesa e que seria um dos amigos mais chegados de Eugène. O forte do liceu eram as letras clássicas. Mas o forte do aluno Delacroix revelou-se outro: o desenho. Um seu tio, H. F. Riesener, também pintor, percebe - e estimula - a extraordinária vocação do rapaz. Leva-o ao estúdio de outro colega, o neoclássico Guérin, de quem Eugène aprenderá as técnicas e os truques da arte de pintar, mas não o estilo ou a concepção de pintura.
Mais por uma questão de temperamento do que por uma avaliação intelectual dos trabalhos, Delacroix sente-se atraído por Veronese, Tintoretto, Goya e Rubens, cujas obras pode ver nos museus de Paris, e os prefere a um Rafael ou a outros mestres consagrados e em evidência na época.
O temperamento é um dado fundamental na história do pintor. Como escreveria seu amigo e crítico, o poeta Baudelaire, "a biografia de Eugène Delacroix é pouco movimentada. Para um homem como ele, pleno de tal coragem e de tal paixão, as lutas mais interessantes são as que deve sustentar contra si próprio". São os sentimentos, não tanto os fatos, que determinam as atitudes do artista. Se isso vale para Delacroix adulto, não vale para Delacroix mocinho. Pelo menos, a ser verdade o que narra o escritor romântico Alexandre Dumas: que, até os treze anos, escapou de morrer por estrangulamento, incêndio, afogamento, envenenamento e sufocamento: o responsável involuntário pelo estrangulamento foi seu próprio irmão mais velho, oficial de cavalaria, que por brincadeira o suspendeu amarrando-lhe as rédeas do cavalo ao pescoço e depois soltou-o de chofre. Eugène ficou preso sem que os pés atingissem o chão, como um enforcado.
O incêndio ocorreu quando Eugène dormia: o mosquiteiro da cama pegou fogo; mas as queimaduras foram leves. O afogamento deu-se no mar. O garoto escapou dos braços da ama e uma onda mais forte quase o levou de vez. Ele também não sabia que tinta é substância altamente tóxica; tanto assim que um belo dia resolveu ingerir o conteúdo de um tubo de tinta de pintura. Escapou por pouco.
Finalmente, ao engolir gulosa e apressadamente um cacho de uvas, ficou com algumas entaladas na garganta; não fosse alguém acudir imediatamente e as consequências poderiam ser menos anedóticas.
Em todo o caso, superadas bravamente tais peripécias, Delacroix desenvolve seu aprendizado cada vez mais na direção de um afastamento dos padrões clássicos, guiado por artistas inovadores como Gros, Gérard e - sobretudo - Géricault, que sentiram no jovem o talento e a inquietação. Com o tempo, Delacroix viu-se cada vez mais ligado a Géricault: o jovem - então com 21 anos - aceitou posar para um quadro de seu mestre, A Balsa da Medusa, que daria muito o que falar, abrindo formalmente as hostilidades entre os seguidores da linha neoclássica e os adeptos da nova escola - os românticos. Enviado ao Salão Oficial, a Balsa da Medusa sofreu cerrados ataques dos críticos ortodoxos; os adjetivos dirigidos a Gericault não foram dos mais brandos. Nessa querela, o ainda desconhecido Eugéne Delacroix interveio a favor do artista e acusou seus acusadores: foi a única vez que Delacroix participou ativamente das polêmicas estéticas. Nos anos vindouros, outros artistas brigarão por ele.
Em 1822, após ter realizado algumas obras de temas sacros, resolveu enviar sua primeira tela ao Salão. É Dante e Virgílio no Inferno, onde se veem as influências do discutido trabalho de Géricault. Imediatamente, o pintor de 24 anos polariza sobre si a atenção geral e afirma-se como o expoente de uma nova tendência, a resposta mais brilhante ao consagrado Ingres, mestre do Neoclassicismo. Não que o estilo tradicional tenha deixado de existir nessa obra de estreia, mas as cores vivas, o movimento dos personagens, as luzes do horizonte indicam já uma orientação diferente.
Essa orientação fica ainda mais explícita com Dois Indianos, pintado em 1823. Este quadro revela gosto de Delacroix pelo exótico - na própria escolha do tema - e, mais que isso, sua habilidade como pintor, seu espírito independente, a espontaneidade com que é capaz de cercar as figuras da pequena tela. Fugindo às descrições de moradas - e cerebrais - prefere captar as emoções dos retratados com toques rápidos e sugestivos, conseguindo ainda um efeito de primeira ordem ao contrastar o branco das vestimentas com o fundo sombrio.
No ano seguinte, Delacroix produz Os Massacres de Quios, quadro de inspiração literária, e enviado ao Salão. Reabre-se a polêmica: os críticos acadêmicos, os mestres oficiais, decididamente torcem o nariz ante a obra. Afinal, aceito o quadro, Delacroix ainda introduz nele algumas modificações, provocadas pela descoberta do inglês Constable: naqueles dias, o pintor fazia uma exposição em Paris e Delacroix, ao vê-la, é tomado pelo maior dos entusiasmos, a ponto de aproveitar as lições do pintor estrangeiro mesmo numa obra já realizada.
Tomando como tema as perseguições sofridas pelo povo grego sob o jugo turco - assunto sobre o qual Delacroix fizera algumas leituras -, Os Massacres de Quios mostra claramente o que os contemporâneos do artista não souberam ver: que a arte de Delacroix, conquanto fosse inovador estava longe de assumir um caráter revolucionário ou significar um rompimento radical com a pintura clássica. São teatrais as atitudes dos personagens. Sua disposição segue o figurino tradicional. Mesmo as cores - exageradamente violentas aos olhos rigorosos da sobriedade acadêmica - não conflitam com a estética vigente. A novidade localiza-se mais no tratamento realista dos detalhes - e este se dê principalmente às alterações motivadas pelo contato com os trabalhos de Constable.
Delacroix sente-se de tal modo atraído pela pintura do inglês que se decide a atravessar a Mancha. Em 1825 embarca para a Inglaterra, onde passa alguns meses, admirando as paisagens, lendo o clássico Shakespeare e o romântico Byron. De volta à França, frequenta os ambientes mais requintados da época. Elegante e simpático, torna-se amigo de celebridades do mundo artístico, entre as quais Frédéric Chopin e sua companheira George Sand. Delacroix os retratou juntos, embora mais tarde a tela viesse a ser cortada, restando apenas a cabeça do compositor.
O êxito de Delacroix não se limitava aos salões. Como bom romântico, não lhe faltaram ligações afetivas - arrebatadas todas, duradoura nenhuma: os modelos Émile e Laure, a loira e delgada Mademoiselle Mars, a misteriosa Madame Dalton, Madame de Forgette (sua prima) e, por fim, Madame de Boulanger, com quem até fugiria - na melhor tradição dos mitos românticos - para o exterior, chegando à Bélgica e Holanda.
Em 1827, Delacroix apresenta o que seria um de seus melhores quadros, um dos raros que não se ressentem de inspirações literárias ou retóricas. É a Natureza-Morta com Lagostas. Cor, desenho e composição inteiram-se numa unidade total - e poética. Paisagem, personagens, peças de caça conjugam-se como instrumentos numa orquestra afinada. Poucas vezes terá o artista consegui-lo explicar-se tão bem com uma pintura, exprimindo plenamente seus princípios reformistas. Aqui, ele abandona a literatura e cria uma mensagem baseada em recursos exclusivamente visuais. Aqui, Delacroix é absolutamente fiel à sua própria crença de que "o primeiro mérito de um quadro é ter sido feito para o olho".
Bem diverso, embora acabado naquele mesmo ano, é O forte de Sardanapalo, obra imensa, teatralizada, grandiloquente, decadentista como uma dança dos sete véus. Inspirada na poesia de Byron, descreve o assassínio do velho rei assírio durante uma orgia. Entretanto, os corpos nus e retorcidos, o emaranhado de membros humanos, o tumulto da cena pelo exagero de elementos, acabam redimidos pelo hábil uso das cores, revelando a maturidade do pintor - então com 29 anos.
Em 1828, dá-se o acontecimento talvez mais importante na vida de Delacroix: sua visita ao Marrocos, como membro da delegação que acompanha o Conde de Momay, embaixador da França junto ao sultão daquele país. A missão do artista é documentar gente, terra e costumes, mas a importância do fato está menos nas vantagens que trará ao pintor nos círculos políticos e diplomáticos e mais em termos da expansão de seus sentimentos: o Marrocos, na visão de Delacroix, é o sonho feito existência, o mistério, o exótico, o diferente da cultura e da civilização a que está habituado e que, no fundo, o entediam. O Marrocos é a grande oportunidade que se oferece ao artista: permite que pinte não só sob inspiração de experiências literárias, intelectuais, formalizantes, mas com base em experiências pessoais, sentidas, vividas. Espontâneas.
As Mulheres de Argel é seu primeiro trabalho que reflete essa vivência. Embora os críticos façam reparos ao aproveitamento das cores - dizendo que as soluções encontradas aqui por Delacroix poderiam ser mais felizes -, é inegável a espontaneidade da obra. A maneira natural com que a cena é descrita, atingindo dimensões realistas, transmite o sentido direto da relação entre o pintor e seu tema. A literatura e o esforço de reconstrução histórica estão diluídos.
O mesmo acontece com A Agitação em Tanger, pintado por volta de 1837/38, ou seja, cerca de quatro anos depois de As Mulheres de Argel. Agora, apura-se ainda mais a expressão do artista, sua percepção apaixonada das coisas: a massa das pessoas, o céu transparente, as casas intensamente iluminadas, o jogo de luzes e sombras transmitem uma vibração sentida, que algumas décadas mais tarde explodiria no Impressionismo.
Nem sempre, porém, Delacroix poderá manter-se nesse rumo, devido às encomendas oficiais que receberá para a execução de grandes pinturas decorativas sobre motivos históricos. Até o fim da vida, sua arte consistirá numa intercalação de trabalhos poéticos, de inspiração subjetiva, e de pinturas grandiosas, narração de episódios militares, lendas medievais e mitologia pagã.
As encomendas oficiais vieram provavelmente em consequência dos desenhos e esboços que Delacroix enviou do Marrocos e que chamaram a atenção das personalidades públicas ligadas ao Governo. Entre elas estava o primeiro-ministro de Luís Filipe, o historiador Thiers, que já conhecia o artista havia muitos anos e o defendera, escrevendo entusiasmado artigo, contra os que criticavam em 1822 Dante e Virgílio no Inferno.
Quando o pintor volta do Marrocos, os convites não tardam. Em 1833 recebe de Thiers a incumbência de pintar o Salão do Rei; em 1838, novo pedido, desta vez para decorar a biblioteca do Palácio Bourbon, sede da Câmara dos Deputados. Passam-se dois anos, outra encomenda: pintura da cúpula e de um hemiciclo no Palácio do Luxemburgo, então sede da Câmara Alta. Mas Delacroix não ficara esperando solicitações oficiais para dedicar-se a temas cívicos e políticos. Numa ocasião, voltara-se a eles espontaneamente. É julho de 1830, eclode a revolução que derruba Carlos X do trono e o substitui por Luís Filipe, filho do Duque de Orléans, chamado "Philippe Égalité" por haver participado da Revolução de 1789. O aristocrático Delacroix não participa das escaramuças. Entretanto, entusiasma-se com os acontecimentos e, tomado de súbitos amores pela democracia, pinta A Liberdade Guiando o Povo, um verdadeiro manifesto de propaganda, cujo valor - enquanto pintura - reside não na retórica, mas na habilidade que o artista revela no manejo das cores. Detalhe curioso da obra é que o próprio pintor nela se fez retratar: o jovem de cartola e fuzil na mão é Delacroix.
Contudo, bem diversos serão seus sentimentos políticos na Revolução de 1848. Quando o povo invade as Tulherias e o Palais-Royal, incendiando, entre outros, o Richelieu Dizendo a Missa, do próprio Delacroix, este escreve: "O homem nasceu livre? Por mais filósofo que seja Rousseau, ninguém jamais disse maior asneira. E, no entanto, tal é a base filosófica desses senhores (os revolucionários)".
De qualquer forma, A Liberdade Guiando o Povo fecha o ciclo das quatro grandes telas de juventude (as outras são Dante e Virgílio no Inferno, Os Massacres de Quios e A Morte de Sardanapalo), que, apesar de todas as polêmicas que possam ter suscitado entre os críticos, ou talvez por causa delas mesmo, fizeram Delacroix famoso aos trinta anos de idade. Passado e futuro encontram-se nesses quatro enormes trabalhos de inspiração patriótica ou literária: a execução e os detalhes são tradicionais; a composição e o desenho, renovadores.
Em 1842, entre as encomendas reais e as saudosas lembranças da África (à qual Delacroix chamava "Oriente"), um inesperado interlúdio surge em sua obra. Talvez por fadiga, talvez por querer distanciar-se um pouco do grandioso ou do exótico, pinta A Educação da Virgem, em que o tema sacro - tão raro em Delacroix - é tratado de forma a sugerir meditação concentrada e atenta, calma e harmonia. Como se um momento de paz e serenidade ocupasse o espírito inquieto do artista. Mas é uma pausa breve. Mesmo quando o pintor retoma o universo religioso, com o Cristo no Lago Genesaré, a agitação novamente aparece: as luzes percorrendo os corpos movimentados, as ondas altas, o barco perigosamente inclinado exprimem uma turbulência que só é quebrada pelo sono tranquilo de Jesus, como a indicar que a fé é mais poderosa que a angústia da morte.
Delacroix é agora um homem de cinquenta anos. A fama e o reconhecimento oficial (em 1849 passa a fazer parte do júri do Salão) não lhe atenuam os sonhos e os conflitos íntimos, da mesma forma como a doença (a então incurável laringite tuberculosa) não lhe afeta a espantosa capacidade de trabalho, da mesma forma como a necessidade que experimenta de recolher-se mais e mais não sufoca o antigo desejo de viajar: em 1850 volta à Bélgica, onde revê seus tão queridos quadros de Rubens. Aproveita a ocasião e estende seu roteiro até a Alemanha. Quando regressa - infatigável -, começa a decoração do Museu do Louvre. Quando termina, lança-se à decoração do Salão da Paz, no Hotel di Ville. E escreve: cartas, artigos, um diário começado na juventude e interrompido de 1824 a 1847, apreciações críticas etc. E pinta seus delírios, suas lutas interiores, suas ansiedades. Em 1855, eles rebentam com A Caça aos Leões. Os tradicionalistas ficam chocados: "É um caos de tons!", exclamam. "Um absurdo tantos vermelhos, verdes, amarelos, violetas..." Baudelaire, o "poeta maldito", lhes responderá: "Jamais cores tão intensas penetraram até a alma pelo canal dos olhos". Três anos mais tarde, outro quadro, o mesmo título, as mesmas emoções, o mesmo conflito.
O "Rubens doente", "o homem do colete verde" - assim seus contemporâneos o chamavam - quase não abandona o estúdio na praça Fürstenberg. Trabalha o dia inteiro: "Que fazer no mundo, além de embebedar-se, quando chega o momento em que a realidade não está à altura do sonho?" Um dos raros amigos a quem Delacroix permite visitá-lo nota que o pintor vive ultra agasalhado, embora o ambiente esteja tão aquecido "que até cobras poderiam ali viver felizes".
Nessa fornalha calafetada, trocada de tempos em tempo por uma estada na casa de campo em Champrosay, perto de Paris, tendo por companhia apenas sua governanta, o artista produz seus últimos trabalhos. Da lembrança do Oriente surgem Cavalos Saindo do Mar. Não é a pintura de um sexagenário. É uma alvorada de vigorosa juventude, a mesma juventude de espírito que o artista manteria até o fim. E o fim se deu a 13 de agosto de 1863. Delacroix tinha 65 anos.

2. A LIBERDADE GUIANDO O POVO – A OBRA 
2.1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
Em 1830, França, Suíça, Bélgica, Itália e Alemanha viviam convulsões sociais que redundariam na instituição de constituições liberais. Sintomaticamente a notícia encontra meios mais eficazes de divulgação no exato momento em que a urgência dos fatos impõe tal exigência, pois, ao mesmo tempo em que a informação se torna mais acessível a amplas camadas da população, a consciência democrática igualmente se alastrava por toda a Europa.
Nesse sentido, a revolução mais importante experimentada pelo periodismo foi a invenção das prensas rotativas a vapor, cuja primeira versão foi construída em 1811 na Inglaterra por Frederich Koenig, ajudado por Andrew Bauer e financeiramente apoiado por Thomas Bensley. Se com os modelos manuais mais aperfeiçoados era possível imprimir 300 folhas por hora, agora, com a prensa mecânica podia-se imprimir 1.100 folhas em igual período, número esse que subiria para cerca de 4.000 já em 1830, através da introdução de aperfeiçoamentos técnicos que resultaram em modelos mais velozes.
E se o fragor dos acontecimentos vivenciados pelas massas tornava-se amplamente conhecido graças à sua veiculação enquanto matéria de reportagens, a necessidade de relatos imediatos dos acontecimentos irá repercutir intensamente na arte do período.
Entretanto, a nova realidade dos centros urbanos industrializados que já proliferavam na Europa no início do século XIX, passa a exigir formas de comunicação mais dinâmicas, papel este que será assumido pelos periódicos ilustrados, enquanto que a pintura permanecia atrelada a um repertório limitado de temas e a convenções que visavam perpetuar uma tradição passada. Segundo Francastel, "é um fato que a primeira coisa a transtornar a sociedade moderna saída da Revolução Francesa e, simultaneamente, a revolução técnica e industrial originária das descobertas da ciência do século XVIII, é o vocabulário plástico". (Francastel, 1990, p. 114).
Por isso, soa absolutamente anacrônico o comentário de Paul de Saint-Victor, crítico de arte em evidência na época, publicado em um livro que escreveu sobre Fontainebleau, no qual se lê: "Preferimos o pequeno bosque por onde correm os faunos à floresta onde trabalham os lenhadores; o manancial grego onde as ninfas se banham ao tanque flamengo onde chafurdam os patos; e o pastor seminu que, com seu cajado virgiliano, conduz seus carneiros e cabras pelos caminhos geórgicos de Poussin, ao camponês que, fumando seu cachimbo sobe pela estrada de Ruysdael" (apud Rewald, 1991, p. 14).

2.2. ANÁLISE DO TEMA DA OBRA
Através da análise da obra pintada por Eugène Delacroix em 1830 intitulada A Liberdade guia o povo, é possível tecer uma fecunda reflexão sobre as implicações sociais da arte, tanto quanto ao seu conteúdo como também no que diz respeito à sua forma.
Portanto, é extremamente significativo que no Salão parisiense de 1831 Delacroix exponha tal tela, com a qual, segundo Argan, a "arte deixa de se remeter ao antigo e se propõe ser, a qualquer preço, do seu próprio tempo". (Argan, 1993, p. 57).
Com essa obra Delacroix subverte as convenções que estabeleciam as alegorias, a história antiga, a religião e os feitos heróicos de personagens ilustres como temas dignos de serem representados através da pintura, dedicando-se a retratar uma sublevação popular da qual foi testemunha ocular ocorrida entre os dias 26 e 28 de julho de 1830 e que culminou na deposição do rei Carlos X. O motivo: a suspensão, pelo monarca deposto, de várias disposições democráticas, entre elas a liberdade de imprensa.
Delacroix se reporta a tais acontecimentos, condensando-os em uma cena de batalha através da qual não só exalta a bravura dos combatentes, mas também caracteriza, através de detalhes significativos, a origem de cada personagem, como um ilustrador atento que captasse os aspectos mais relevantes do fato presenciado.  É certo que na figura feminina, representando a Liberdade e que domina a composição, ainda há vestígios dos modelos gregos tão caros à arte praticada na França, como também é inequívoco o seu caráter alegórico. Entretanto, com igual ênfase, há traços que revelam sua condição de mulher do povo, como os seios sujos de pólvora e a indiscreta pelosidade das axilas.
Sua mão direita, resolutamente erguida, empunha a bandeira tricolor transformada em símbolo de sublevação na Revolução Francesa (1789).  Na mão esquerda segura um fuzil com baioneta no cano, o que significa estar preparada para a batalha corpo a corpo.  A cabeça é coberta por um gorro frígio, chapéu originário da antiga Pérsia e usado em Roma por escravos sublevados que, ao ser adotado durante a Revolução Francesa, converteu-se em um dos símbolos da República.
A caracterização da Liberdade e dos demais personagens da cena pintada como pessoas do povo causou profunda indignação na crítica da época que reagiu com comentários sarcásticos e acerbos.  Afinal, os preceitos acadêmicos então vigentes estabeleciam que a representação do corpo humano deveria se pautar pelo estudo minucioso, durante anos a fio, de figuras imóveis posando em um ateliê, iluminadas por luz indireta.  E mesmo quando se retratavam fatos contemporâneos, sua representação se submetia à imitação de modelos antigos, resgatados através de pesquisas eruditas, reproduzidos através de demorados estudos, cujo resultado era uma mistura de habilidade vazia e artificialidade narrativa.  É evidente que as representações daí resultantes não tinham nenhuma similaridade com as experiências visuais próprias à vida real.
Os temas escolhidos por Eugène Delacroix refletem diretamente a sensibilidade romântica.
Delacroix se interessou também pelos temas políticos do momento. Sentindo-se um pouco culpado pela sua pouca participação nos acontecimentos do país, pintou ''A Liberdade Guiando o Povo'' (1830), um quadro que o estado adquiriu e que foi exibido poucas vezes, por ter sido considerado excessivamente panfletário. O certo é que a bandeira francesa tremulando nas mãos de uma liberdade resoluta e destemida, prestes a saltar da tela, impressionou um número não pequeno de espectadores.
Esta pintura, que é uma sorte do poder político, significa comemorar o dia de 28 julho de 1830, quando os povos se levantaram e destronaram o rei de Bourbon. Alexandre Dumas diz-nos que a participação de Delacroix nos movimentos rebeldes de julho era principalmente de uma natureza sentimental. Apesar deste, o pintor, que tinha sido um membro do protetor nacional, fez exame do prazer em retratar-se na figura na esquerda que desgasta o alto-chapéu. Embora a pintura seja cheia de retórica, o espírito de Delacroix é envolvido inteiramente em sua execução: na figura outstretched da liberdade, nas atitudes corajosas (realce) do herm seguindo dos povos contrastado com as figuras dos mortos, a multidão acima no primeiro plano, nas poses heroicas dos povos lutando pela liberdade, lá é sem dúvida nenhuma um sentido da participação do artista, que conduziu Argan para definir esta tela como o primeiro trabalho político da pintura moderna.
A liberdade que conduz aos povos causou um distúrbio. É impressionantemente realística. As ajudas da alegoria conseguem a universalidade na pintura: A liberdade não é uma mulher; é uma força abstrata.
A esse alheamento Delacroix opõe a contundência de A Liberdade guia o povo, onde os modelos idealizados são substituídos por personagens reais e ao invés de glorificar personagens ilustres, presta homenagem a uma multidão de anônimos, entre os quais retrata a si próprio, testemunha ocular dos fatos narrados.  Com tal obra Delacroix estabeleceu as premissas que orientarão as tendências cujo combate sistemático ao academicismo culminará na sua superação ao final do século XIX, sendo plenamente justificado, portanto, a alcunha de primeiro pintor moderno que lhe foi conferida por Baudelaire.
Ser moderno implicava, sobretudo, em estar atento às transformações que caracterizavam sua época. E Delacroix soube perceber, na sucessão de acontecimentos que o envolviam, a dinâmica de um novo tempo e por isso logrou retratá-lo tão bem, submetendo a um caráter nitidamente jornalístico a realização de A Liberdade guia o povo, perfeitamente afinado, portanto, com a prática instaurada pelos periódicos de trazer à luz informações atuais.
OBS: essa obra é o símbolo da Revolução Francesa, não é apenas o símbolo da França, mas também da democracia.

2.3. ANÁLISE VISUAL DE ACORDO COM OS ELEMENTOS DE LINGUAGEM (LINHA, SUPERFÍCIE, LUZ, VOLUME, COR)
Delacroix é um mestre da cor, e sua influência em Cézanne e em Matisse está desobstruída. Em suas próprias palavras: “O trabalho de um pintor que não seja um colorista é iluminação melhor que pintura. Se alguém pretende algo à exceção dos cameos, a cor é, estritamente discurso, um dos princípios fundamentos da pintura, não menos assim do que o claro-escuro, proporção e perspectiva… A cor dá a aparência da vida. ”
E de fato, na obra de Delacroix a cor é mais importante que o desenho.
Depois de uma viagem ao Marrocos, o pintor renovou sua linguagem pictórica. A cor parece ter-se tornado independente da composição e mesmo quando beirava perigosamente os limites do decorativo ganhou uma força expressiva. A importância de Delacroix para a História da Arte exprime-se principalmente na pesquisa de cores por ele desenvolvida: Eugène representava a sombra das suas figuras não mais seguindo o ''sfumato'' renascentista, mas aplicando a cor complementar à cor local. Desta forma, aplicava o verde para sombrear o vermelho, por exemplo.
Demasiado poderia fazer saber ao movimento turbulento de formulários brilhantemente coloridos sem perturbar a harmonia de seu arranjo e de sua composição total na luz e no espaço.
Nesse sentido, é altamente relevante o fato de Delacroix ter, através de A Liberdade guia o povo, não só abandonado os princípios clássicos de representação, como também adotado uma maneira de pintar igualmente anti-classicista, caracterizada pela rapidez de execução obtida através da aplicação da tinta por meio de pinceladas largas, de modo que as figuras são compostas pelos contrastes entre amplas áreas de claro e escuro.  Tal procedimento remete diretamente aos chamados "artistas de manchas", que eram os responsáveis por enviar às redações dos periódicos desenhos realizados diretamente no local dos acontecimentos, e que serviam de base para a elaboração das matrizes gravadas a serem utilizadas nas impressões.
Portanto, aos "artistas de manchas" competia a função que décadas mais tarde, com o desenvolvimento dos equipamentos portáteis, caberia aos repórteres fotográficos, ou seja, captar o instantâneo. Para tanto seu desenho tinha de ser executado com muita rapidez e, ao mesmo tempo, deveria ter a capacidade de descrever a cena com o máximo de precisão.
Ao compor a cena de A Liberdade guia o povo, premido pela urgência de retratá-la de forma viva e atual, Delacroix adota uma postura análoga àquela dos "artistas de manchas", transpondo para a pintura procedimentos próprios à produção de imagens como registro jornalístico, estabelecendo assim novos parâmetros para a tarefa da pintura de informar e explicar através do universo das imagens.
Graças ao seu poder de ilusão visual e sua versátil adaptabilidade a quaisquer superfícies, ao longo dos séculos a pintura se manteve como uma das mais eficazes formas de discurso público, investida de um poder de convencimento inigualável. Sua única limitação decorria de sua irreprodutibilidade, porém, mesmo confrontada com o fenômeno da densificação icônica instaurado pelo advento das técnicas de gravura, a pintura continuou sendo o modelo por excelência de eficácia comunicacional, face à eloquência que emana do seu caráter ilusionista.
As cores se libertaram e fortaleceram, dando a impressão, às vezes, de serem mais importantes que o próprio conteúdo da obra. A paisagem passou a desempenhar o papel principal, não mais como cenário da composição, mas em estreita relação com os personagens das obras e como seu meio de expressão.
O romantismo foi marcado pelo amor a natureza livre e autêntica, pela aquisição de uma sensibilidade poética pela paisagem, valorizada pela profusão de cores, refletindo assim o estado de espírito do autor.
Delacroix libertou a pintura do conceito clássico de cor como uma tintura aplicada sobre o desenho. Por sua mão, a cor se tornou o meio de modelar formas, descoberta levada adiante mais tarde por van Gogh, Renoir, Degas, Seurat e Cèzanne. Delacroix não tentava reproduzir a realidade com precisão, mas almejava capturar sua essência. Com uma enorme produção, Delacroix pintava em estado febril, atacando furiosamente toda a tela de uma vez, dizendo que "se você não tiver habilidade suficiente para esboçar um homem caindo pela janela durante o tempo que leva para ele chegar do quinto andar ao chão, então jamais será capaz de produzir uma obra monumental".

3. COMPARAÇÕES ENTRE AS OBRAS DE DELACROIX, RUBENS E REMBRANDT
Delacroix representa o cume da pintura romântica. É um apaixonado da vitalidade, da exuberância e do esbanjamento de cores, como Rubens e Rembrandt.
Delacroix admirava em Rubens uma qualidade que ele mesmo possuía na abundância: a habilidade de unir a alegoria e a história, e de moldar nas figuras inteiras tumultos mitológicos, históricas, literárias e reais.
Alguns críticos viram na composição de Delacroix o dinamismo de Rubens, baseadas em temas exóticos e históricos, de composições bem mais caóticas e de uma dramaticidade e simbolismo cromático incompreensíveis para a Academia.
Delacroix redescobriu o espírito de Rubens, mas as obras-primas que criou sob sua influência são de um tipo muito diferente. Picasso diz de Delacroix: “Você fez exame do que você pôde de Rubens e fez Delacroix de si mesmo. Da mesma maneira, eu penso em você e o que eu faço sou eu próprio”.
O último dos grandes artistas do renascimento, Delacroix vem de uma linhagem cujo filho pródigo foi Rubens. Charles Baudelaire, um admirador incondicional, põe-no assim em seu Eugene Delacroix, trabalho e vida: Em toda parte nós vemos “… a desolação, os massacres e o fogo, tudo testemunha da barbaridade eterna e incorrigível da humanidade. As ascensões das fumaças das cidades demolidas, as gargantas das vítimas são cortadas, as mulheres são violadas, e as crianças arremessadas ou são perfuradas pelos punhais de suas mães desvairadas; este corpo inteiro é um hino no elogio de sofrer inevitável e irreal".
“Embora nós sigamos a herança artística de Delacroix depois de Rubens, em matéria de cor há uma influência mais adicional, que da escola Venetian”.
Sem dúvida alguma, foi Rubens que deixou a marca mais profunda na arte de Delacroix. Delacroix foi oprimido. A afinidade entre a vitalidade dinâmica que ronda a arte de Rubens e de Delacroix está desobstruída: “Vem então Rubens, que tinha esquecido já das tradições da simplicidade e da graça. Criou uma força pura, direta, novo ideal do gênio. A força, os efeitos impressionantes e a expressividade são empurradas para seus limites. ”.
“Maurice Sérullaz expõe: “Delacroix percebeu que, sob o ímpeto de Rubens, uma nova época da arte tinha sido aberta, uma era da síntese e equilíbrio. Numa mão, havia o poder, abundância, dinamismo impetuoso, realismo - e alguma tendência para a eloquência barroca e o efeito uniforme. Na outra, havia uma nobreza da concepção e do estilo. A harmonia, a sobriedade e a austeridade paradigmática dos mestres Clássicos. Assim Delacroix descobriu-se através de Rubens. Em Rubens, seus próprios erros encontraram suas justificativas. Tinham sido criticados severamente por seus contemporâneos, especialmente em suas grandes composições decorativas; mas, como em Rubens, é o trabalho de um gênio racional e impulsivo, inventivo e objetivo, visionário e realista. ”
A vida superabundante e a invenção decorativa que tipifica o trabalho de Rubens estarão durante toda a carreira de Delacroix. 
A arte barroca, no seu melhor, foi um casamento das artes da arquitetura, da pintura e da escultura com a intenção de convidar o espectador a emocionalmente tomar parte daquilo que ela estava retratando. O estilo envolvia uma rica e muitas vezes surpreendente e emotiva mistura de cor, luz e movimento. Era um estilo de obra no qual Rubens brilhava e para o qual sua personalidade afetuosa, emocional e amigável, sua erudita formação europeia e sua religião católica eram idealmente talhadas. 
Rembrandt Van Rijn é uma das mais eminentes figuras na história da arte europeia; muitos o classificariam como o maior de todos os pintores. Trabalhou dentro da tradição superficialmente limitada da arte protestante holandesa e nunca deixou sua terra natal. Ainda assim, foi não apenas um pintor tecnicamente brilhante como também mostrou um novo tipo de percepção: ninguém antes de Rembrandt fez as coisas comuns da humanidade parecerem tão profundamente sérias e interessantes. Em seus quadros sobre episódios históricos e bíblicos, assim como nos seus retratos de contemporâneos ricos e pobres, Rembrandt parece ir direto ao coração. Sua capacidade de percepção pode ter sido baseada no autoconhecimento, pois ele pintou sua própria imagem repetidas vezes, fazendo um registro único da peregrinação da juventude e de sucesso rumo à velhice e ao sofrimento.

CONCLUSÃO
"Trabalharei até a agonia: que fazer no mundo, além de embebedar-se, quando chega o momento em que a realidade não está mais à altura do sonho?"
"Uma vida inteira não me basta para produzir tudo o que tenho em mente. "
"Tenho assunto para ocupar o espírito e as mãos por mais de quatrocentos anos. "
Essas são palavras do próprio Eugène Delacroix, revelando o gosto e a necessidade de produzir, de pintar.
Para Delacroix o trabalho - pintar e escrever - deve ser perturbado o menos possível, pois o considera um rito, um ato de magia. Por meio desse trabalho, pelo que significa em criação e expansão de sentimentos, é que a realidade pode ser subjetivamente transfigurada para amoldar-se às exigências da fantasia.
Pela arte, pensa o homem, é que o cotidiano pode ser afugentado. Por meio da arte é que podem ganhar forma os devaneios de glória e aventura, de paixões e sacrifícios. E esse ideal romântico, pensa também, é o único a dar sentido à existência.


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